O Apóstolo da China

Um dos principais líderes da Igreja clandestina chinesa, Liu Zhenying, o Irmão Yun, tem uma trajetória marcada pelo sofrimento por amor a Cristo. O livro de Atos dos Apóstolos menciona a trajetória de homens que se tornaram verdadeiros heróis da fé por anunciar o Evangelho em um mundo hostil à mensagem cristã. Gente como Pedro, Silas e, principalmente, Paulo sofreram na própria pele o preço de seguir a Jesus e fazê-lo conhecido: foram perseguidos, espancados, presos e alijados dos mais elementares direitos por sua opção de seguir o “Ide” do Mestre. Das páginas da Bíblia aos dias de hoje, quase tudo mudou, menos a disposição de alguns crentes em arriscar a própria vida em favor das almas sem salvação. Conhecido simplesmente como Irmão Yun, o chinês Liu Zhenying é um homem simples, de pouca instrução formal, para quem o conhecimento do Reino de Deus vem muito mais pela experiência prática do que dos bancos teológicos. Mas tem construído em plena pós-modernidade uma biografia daquelas que a própria Bíblia define como a de homens dos quais o mundo não é digno. Missionário por convicção, Yun dedicou a maior parte de sua vida à pregação do Evangelho aos seus compatriotas. Foi preso diversas vezes, submetido a trabalhos forçados, fome e maus tratos. Mesmo assim, nunca perdeu a disposição e a visão do Reino de Deus. Ele é o “Homem do Céu”. O apelido, que dá nome ao seu livro autobiográfico escrito em parceria com Paul Hattaway (lançado no Brasil pela Editora Betânia), surgiu depois de um dos muitos problemas que teve com as autoridades de seu país por insistir em fazer proselitismo cristão, o que, pelas leis comunistas que regem a China, é proibido. Líder da Igreja doméstica chinesa – que, ao contrário da Igreja oficial, monitorada pelo governo, luta para viver sua fé livremente (ver abaixo) –, ele certa vez recusou-se a dar aos policiais o seu verdadeiro nome e endereço, para não pôr em risco seus irmãos na fé. Simplesmente gritou: “Sou um homem do céu, meu lar é o céu!”, senha que, ouvida pelos outros crentes, permitiu que todos fugissem a tempo das casas vizinhas. Nascido em 1958, Yun veio ao mundo numa aldeia pobre da província de Henan, região central da República Popular da China. Era uma época de extrema repressão política no país, quando a Guarda Vermelha da Revolução Cultural espalhava o terror entre os considerados inimigos do regime. Como a Bíblia era um livro proibido e pregar o Evangelho, um crime contra o Estado, só mesmo uma evidente manifestação do poder de Deus poderia levar alguém a crer em Jesus. E ela aconteceu quando o pai de Yun, abatido por um câncer mortal, teve a saúde restabelecida, fato atribuído pela família a um milagre divino. A partir dali, a casa da família virou uma igreja doméstica, onde o nome de Jesus era pregado entre portas trancadas e janelas cerradas. Uma congregação sem bíblias, mas com extremo ardor missionário, nasceu. Nasce um pregador – “Eu tinha 16 anos de idade quando o Senhor me chamou para segui-lo”, lembra Yun. Seus primeiros passos na fé foram marcados por situações inusitadas – como certa vez em que sonhou que dois homens lhe davam uma Bíblia. Por toda a China, pouquíssimos exemplares das Escrituras resistiram às fogueiras do Partido Comunista. Apenas a leitura de O livro vermelho de Mao Tsé-Tung era permitida. Após orar e jejuar semanas a fio por uma Bíblia, os dois homens que vira no sonho foram sorrateiramente à sua casa e lhe entregaram um exemplar da Palavra de Deus. Após ler e decorar passagens inteiras, o jovem Yun ouviu alguém lhe dizer, no meio de uma noite, que seria enviado a pregar o Evangelho. Pensou que era sua mãe quem o chamava, mas após ouvir a voz mais duas vezes, entendeu, à semelhança do que ocorreu com Samuel, que era o próprio Deus que o comissionava como sua testemunha. Em pouco tempo, a história do rapaz que havia recebido “um livro do céu” correu a região. Yun começou a ser chamado a várias vilas, sempre encontrando pessoas ávidas por ouvi-lo. Batizava os novos convertidos às escondidas, durante as madrugadas. “Multidões se convertiam todos os dias”, relata em seu livro. Começou a ser perseguido, e à semelhança dos apóstolos do Novo Testamento, compartilhava a Palavra de Deus por onde ia ou era levado – inclusive na cadeia. Chegou a passar três anos preso, e numa dessas detenções conseguiu fugir inexplicavelmente pelo portão principal da penitenciária. Esteve com a vida por um fio diversas vezes, como na ocasião em que jejuou por mais de 70 dias. “Tenho fome de homens e almas”, dizia resolutamente aos que lhe aconselhavam a comer.
Para Yun, os longos períodos de prisão, embora o afastassem da igreja, da mulher, Deling, e dos dois filhos, eram uma oportunidade e tanto para evangelizar os companheiros de cela. “Eu fiz um acordo com o líder da prisão, que se eu fizesse bem as minhas tarefas, ele me deixaria ficar com a minha Bíblia”, lembra. “A maioria dos prisioneiros não eram criminosos perigosos e descobri que muitos deles tinham membros da família que eram cristãos”. Após sucessivos processos, foi solto pela última vez em 1999 e fugiu da China com a família, primeiro para Myanmar e depois para a Alemanha, onde obteve a condição de refugiado. Mesmo no Ocidente, Yun mantém contato frequente com a Igreja clandestina chinesa e atua mobilizando a comunidade evangélica internacional em favor dos crentes perseguidos de seu país. Ele fundou a missão Back to Jerusalem (“De volta a Jerusalém”), que treina missionários para pregar o Evangelho na chamada Janela 10-40, região imaginária situada entre aqueles paralelos geográficos e que inclui as nações menos evangelizadas do mundo, inclusive a China. Presença requisitada no mundo todo, o missionário visita o Brasil pela primeira vez agora em abril. Aqui, cumpre uma agenda que inclui São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte (MG) e Brasília, entre outras localidades. “Minha primeira impressão sobre o país veio pelas palavras de um jogador de futebol brasileiro que, depois da conquista da Copa do Mundo de 1994, disse que foi Deus quem lhe deu a vitória”, diz Yun. Com esta viagem, ele espera proclamar aos cristãos brasileiros a necessidade de cada qual, em particular, se tornar um “discípulo consequente” de Jesus. Irmão Yun quer que sua presença no Brasil sirva de despertamento para a Igreja Evangélica nacional acerca de urgência da evangelização mundial. “Nosso chamado é o de levar o Evangelho a todas as nações por onde passarmos”, conclui. “Orem pela Igreja clandestina”. Poucas semanas antes de embarcar rumo ao Brasil, o missionário Liu Zhenying atendeu com exclusividade a reportagem de CRISTIANISMO HOJE na Alemanha, onde vive. Nesta entrevista, concedida em mandarim, ele faz um relato da situação dos cristãos em seu país e apela à Igreja ocidental que renuncie ao materialismo e assuma posição de relevância na obra de evangelização mundial. “Orem pela China”, pede.
CRISTIANISMO HOJE – Qual é a real situação, hoje, da Igreja perseguida em seu país?
IRMÃO YUN – Ela está crescendo, apesar da constante perseguição. Hoje mesmo, pela manhã [N.da Redação: a entrevista foi concedida no dia 8 de março], recebi um telefonema dando conta de que, nas últimas três semanas, mais de setenta líderes das igrejas não-oficiais, somente na minha cidade de origem, foram presos. Os policiais tomaram deles tudo o que possuíam – que já era pouco – e ainda lhes aplicaram uma multa em dinheiro. Como todos os nossos pastores e líderes são pobres, não têm como pagar; então, permanecem na prisão por muito tempo.
Estima-se que a população cristã na China de hoje beira os 80 milhões de indivíduos, o que a colocaria na segunda posição mundial em números absolutos de crentes. Esse número corresponde à realidade? Bem, conforme os últimos relatos do ministério encarregado dos assuntos religiosos do governo chinês, o número de cristãos na China já passou dos 100 milhões. Os dados passados pelos responsáveis do governo são reais, pois há poucos dias um líder da Igreja doméstica me confirmou esse número. Eu, pessoalmente, acredito que são mais de 20 mil conversões por dia. Mas há organizações que falam em mais de 30 mil novos convertidos ao Evangelho diariamente. Quantos deles pertencem às igrejas clandestinas? Cerca de 70 por cento dos crentes chineses são ligados às igrejas clandestinas e às comunidades evangélicas domésticas. Os outros são membros da Igreja oficial. Qual o perfil social da membresia da Igreja chinesa? Antigamente, havia cristãos somente nas pequenas províncias, e eles eram muito pobres. Após 1989 [N.da redação: naquele ano, houve um grande levante estudantil contra o regime chinês, que desencadeou o Massacre da Praça da Paz Celestial, na capital Pequim], muitos estudantes se converteram a Jesus. Desde então, pessoas de poder aquisitivo também passaram a crer no Senhor. O senhor acha possível ser um verdadeiro cristão estando ligado à Igreja oficial? É possível, sim. Eles amam a Deus, assim como os outros cristãos da Igreja subterrânea também o fazem. Esses irmãos trabalham para o governo, mas seus corações pertencem a Jesus. Existe algum diálogo entre o Estado e a Igreja não-oficial? Não existe esse diálogo porque o governo chinês não dá ninguém nenhuma oportunidade de conversação. Eles perseguem a Igreja clandestina continuamente. Quais são as maiores penalidades a que um cristão pode ser submetido pelas leis chinesas? Na China, o cristão pode ser condenado até mesmo à pena de morte. É proibido falar do Evangelho. São permitidos apenas os cultos realizados pela Igreja oficial – e o governo impõe dia, hora e local para a realização dessas reuniões. Quem não cumpre exatamente o estabelecido é multado como os setenta pastores recentemente punidos. Como já disse, quem não tem dinheiro para arcar com essas multas acaba preso. Como é o ensino religioso e a formação de obreiros na China? Existem escolas bíblicas nas igrejas oficiais. Nas congregações subterrâneas, temos seminários clandestinos para preparo de líderes. Mas quando as aulas são dadas por um professor estrangeiro e ele é descoberto pelas autoridades, é imediatamente deportado e não pode retornar ao país durante cinco anos. É possível montar uma liderança forte nestas condições? As igrejas clandestinas têm a sua liderança autóctone muito forte e bem preparada – para ser aprovado para dirigir uma igreja não-oficial, é necessário que o candidato a líder tenha passado pelo cativeiro ao menos de uma até três vezes. Apenas estudar numa escola bíblica não é suficiente. Como é o dia-a-dia de um crente perseguido em função de sua fé? Um cristão ou lider perseguido não deve retornar para sua casa. Caso a sua família ou os seus amigos o acolham, tornam-se seus cúmplices, e também podem ser presos. Muitos vão para as pequenas províncias para fazer o trabalho missionário. Mas, muitos outros, mesmo correndo o risco de serem presos, permanecem onde estão, falando do Evangelho por amor a Jesus. Como é o seu ministério hoje, depois que obteve asilo na Alemanha? Meu ministério continua sendo pregar o Evangelho e dar testemunho do poder de Jesus. Eu trabalho principalmente com obreiros e pastores. Eu amo a Igreja clandestina chinesa e considero-me seu porta-voz aqui no Ocidente. Em seu livro, o senhor relata diversos episódios marcados pelo que considera ação sobrenatural de Deus, como a cura de seu pai e a sua fuga da prisão. Muitos crentes, contudo, acham que esse tipo de manifestação está restrito ao passado. O que é preciso para ver o milagre acontecer? Nós precisamos ter fé, confiar no Senhor e orar para que o milagre possa acontecer. Nós precisamos obedecer exatamente às instruções de Deus, então pode acontecer um milagre. Eu acredito que milagres assim não aconteceram só na época dos apóstolos ou comigo, mas ocorrem diariamente e podem acontecer com todos os que creem na verdade divina. Mesmo que o mundo se modifique, a Palavra de Deus jamais mudará. Ela permanece a mesma, sempre real e viva!
O senhor faz críticas ao materialismo da Igreja Evangélica ocidental. Na sua opinião, como essa Igreja pode exercer papel relevante no Reino de Deus? Primeiramente, verifiquei que os pastores das igrejas tradicionais ocidentais veem sua obra como uma profissão. Isso significa que não realizam a obra de Deus como um chamado e não querem abrir mão do seu poder aquisitivo. Na China, nossas prioridades são diferentes: primeiro, tornar-se cristão, através da conversão. Segundo, afastar-se das tentações e tentar viver uma vida sem pecado. Acredito que, apesar da influência do materialismo sobre o Ocidente, a Igreja dessa parte do mundo deve se empenhar para divulgar o Evangelho e ajudar aos necessitados. O que a Igreja brasileira, especificamente, pode fazer em relação àqueles irmãos chineses que sofrem restrições e supressão de direitos em virtude de sua fé em Cristo? Em primeiro lugar, orar pelas famílias dos líderes e pastores encarcerados. Eu sou muito grato aos irmãos de todo o mundo que oraram por mim e por minha família enquanto estive preso. É preciso orar também pela evangelização nos países budistas, islâmicos e hinduístas, e pelas Igrejas clandestinas chinesas, também chamadas subterrâneas, para que não sejam influenciadas pelo crescimento econômico. Pedir a Deus que, apesar da perseguição, elas continuem firmes e convictas na visão do Reino de Deus. O desejo sincero do meu coração é que cada cidadão chinês possa possuir a sua própria Bíblia. Aos 51 anos de idade e depois de tantos sofrimentos, experiências milagrosas e realizações para o Reino de Deus, o que o senhor faria diferente em seu ministério, caso pudesse voltar no tempo? Olha, eu agradeço a Deus por haver me convertido ao cristianismo aos 16 anos de idade. Na minha vida, já passei por muitos sofrimentos e também obtive muitas vitórias. Não me arrependo de nada. Porém, se eu tivesse a oportunidade de voltar no tempo novamente, eu faria tudo com maior convicção, dedicação e fé.

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